A R(AI)Z da porcelana: Ai Weiwei e a Nova Ordem Mundial (2/2)
Meu ensaio anterior refletiu um pouco sobre o título R(AI)Z dado à maior individual de Ai Weiwei até o presente. Olhei ali pela lente literal da madeira e da presença factual das raizes no espaço expositivo em si. Agora queria abstrair um pouco mais o conceito de raiz e descer mais alguns degraus nessa abstração, falando sobre outro tipo de raiz — mais profunda, mais sútil: a porcelana.
Deslocando-me pelo espaço expositivo da Oca que, diga-se de passagem, comporta-se de modo muito mais sublime recebendo as dimensões generosas e arejadas da arte contemporânea do que o cansado tumulto das feiras de design, percebemos uma heterogeneidade de peças e materiais de grande riqueza na empresa de Weiwei. Ora artefatos museológicos, ora esculturas, ora fotos de grande formato, ora lúgubres infláveis negros. Tanto em termos de tema quanto materiais, o artista é diverso. Diverso mas consistente. Sem embromar sobre essa diversidade, gostaria de apontar para uma peça específica constituída pela porcelana. Trata-se de um cubo de cilindros de porcelana. Neste modelo os cilindros são traves brancas de espesso diâmetro e se formam a partir da tradicional porcelana chinesa com seu comum trabalho de motivos dinásticos sob azul cobalto. A peça se estende pelo espaço na simetria ideal de um cubo em uma curiosa escala humana.
“A porcelana remonta os fundamentos da civilização chinesa e, portanto, os fundamentos da civilização humana.”
Em uma imposição geométrica que assemelha-se à presença numinosa do monolito de Kubrick em 2001 a escultura — ou seria uma instalação? — abraça o espaço criando um grande vácuo em seu centro que cria, também, um grande vácuo de sentido no encontro do que parece ser o passado e o futuro. O cubo nos remete a uma China tradicional e anciã mas, ao mesmo tempo, evoca o minimalismo e o rigor da tradição moderna que nos joga sempre a um eterno futuro das formas platônicas. O choque do ancestral e da novidade sobrevoam com sutileza o espaço oculto revelado pelo cubo. A vontade que ocorre é a de adentrar esse espaço físico-simbólico criado pelo objeto — nos colocando não mais como o observador do cubo, mas como o próprio habitante deste vão existente entre passado e futuro.
Retornando à porcelana para além do simbolismo do cubo é interessante constatar que grande parte do corpo da obra de Ai Weiwei se perfaz por este material. Mas se perfaz não nesta evocação kitsch da porcelana tradicional, mas e]antes sim da porcelana mimetizando o mundo natural, como uma forma de erigir uma segunda natureza, onde a cultura civilizatória da representação toma conta do mundo natural não pela tecnologia propriamente dita, mas antes sim, pela técnica. Vemos isso nas repetições exacerbadas encontradas nos caranguejos de porcelana, nos belos crisântemos de porcelana e também no ápice da escala com a sublime obra das sementes de girassol — também de porcelana que, pintadas à mão uma a uma remontam a manancial de dezenas de milhões de sementes imitando a semente real. Esta, talvez, uma das obras mais faladas e mais potentes do corpo de Ai Weiwei.
Carangueijos e sementes de porcelana são pistas sobre a sempre presente segunda natureza das civilizações.
Mas retornando mais uma vez ao cubo, neste espaço intermitente entre um passado distante e futuro tocante, reflito sobre a posição da China, antes mesmo de refletir sobre a própria posição da arte na atualidade. A arte, com seu vagar diverso já não nos anima a refletir de modo sólido sobre sua função, já que ela mesma põe-se semi-livre do sistema em sua ampla diversidade atual. O mesmo não podemos dizer dos países, que cada vez mais buscam funções específicas dentro do sistema global. A função da China por décadas foi a de ser o parque de produção do mundo. Mas agora, neste novo ciclo, a China em sua pretensa posição de liderança econômica mundial nas maiores partes das vezes não nos faz sonhá-la para além de seu status de novíssima potência econômica. Mas diante do cubo de Weiwei conectado a estas eternas raizes ancestrais sonhamos, como poucas vezes o fazemos, sobre este império futuro que nos impulsion a a uma nova ordem mundial imediata, inegável e, acima de tudo, inevitável. Weiwei ativa o ativista em todos nós, mas sua maior contribuição para o futuro talvez seja a, por vezes, relampejar em pequenos artefatos e momentos a dimensão magnânima da atualidade de um império humano que se anuncia há mais de 3 séculos.
João Mognon é artista e pesquisador e este ensaio foi publicado originalmente em seu Blog em dezembro de 2018.